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O cavaleiro e a serpente

Existe um provérbio que diz: “A ‘oposição’ do homem instruído é melhor que o ‘apoio’ do tolo”.

Eu, Salim Abdali, atesto ser isto certo tanto nos níveis mais elevados da existência, como nos mais baixos.

Tal constatação se faz mais evidente na tradição dos Sábios, que vieram a difundir a história do Cavaleiro e da Serpente.

Um cavaleiro, do alto de sua privilegiada posição, viu como uma serpente venenosa se insinuava garganta adentro de um homem adormecido. O cavaleiro sabia que se deixasse aquele homem dormir, certamente o veneno o mataria.

Sendo assim, sacudiu com força o dorminhoco até despertá-lo. Sem perda de tempo, obrigou-o a ir a um lugar onde havia várias maçãs apodrecidas, jogadas ao solo, e o forçou a comê-las. Depois, fez com que ele bebesse grandes goles d’água de um riacho.

Enquanto isso acontecia, o homem tentava escapar, gritando:

– Que fiz, inimigo da humanidade, para que abuse de mim desta maneira?

Finalmente, quando já estava quase exausto e caía a noite, o homem deixou-se cair ao chão e aí vomitou as maçãs, a água e a serpente. Quando viu o que havia expelido compreendeu o ocorrido, pedindo perdão ao cavaleiro.

Esta é a nossa condição. Ao ler estas linhas, não tomem história por alegoria, nem alegoria por história. Os que são dotados de conhecimento tem responsabilidade. Aquele que carecem de conhecimento, nada possuem além de conjecturas.

O homem que foi salvo disse:

– Se você me tivesse dito o que ocorria, eu teria aceito seu tratamento de bom grado.

– Se eu lhe contasse então, você não teria acreditado. Ou ficaria paralisado pelo terror. Ou teria fugido. Ou mergulharia no sono de novo, buscando esquecer. E aí não haveria tempo para salvá-lo.

Após dizer tais palavras, o cavaleiro esporeou sua montaria e desapareceu.

Salim Abdali (1700-1765) fez com que recaíssem sobre os sufis calúnias quase sem precedentes oriundas dos intelectuais, ao afirmar que um mestre sufi conhece o que há de errado com um homem, e tem que agir rápida e paradoxalmente para salvá-lo, despertando assim a fúria daqueles que não sabem o que está fazendo. Abdali cita essa história de Rumi. Ainda hoje, talvez haja pessoas que não aceitam as idéias contidas neste conto. No entanto, o enunciado de Abdali tem sido aceito, de uma forma ou de outra, por todos os sufis.
Ao comentar a questão, o mestre Haidar Gul diz simplesmente: “Há um limite além do qual não é salutar para o gênero humano ocultar a verdade a fim de não ofender com a mesma aqueles cuja mente está fechada”

Extraído de ‘Histórias dos Dervixes’
Idries Shah
Nova Fronteira 1976

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