Yunus Emré, em tempos muito antigos, inventou contos mais duráveis que a memória de sua própria vida. Foi também um incansável buscador da verdade. Aos vinte anos aproximadamente, ou talvez mais jovem ainda, veio-lhe ao coração uma avidez pelo conhecimento que o levou pelos caminhos do mundo. Ele partiu na esperança que essa sede de saber o conduzisse a um mestre que o iluminasse. Esse mestre foi-lhe dado encontrar depois de dez anos de errância miserável, no grande vento de uma colina, em plena estepe da Anatólia. Chamava-se Taptuk e era cego.
Taptuk também havia viajado muito, mas por caminhos diferentes dos de Yunus. Adolescente ainda, raspou sua cabeça e sobrancelhas e vestindo um gorro de feltro vermelho foi combater invasores mongóis. Atravessou tantas derrotas quantas efêmeras vitórias. Cavalgou com o sabre entre os dentes, perseguindo homens tão loucos quanto ele.
Odiou, pilhou, matou, cem vezes perdeu e encontrou sua alma no furor dos combates, até que finalmente o silencio se abateu sobre sua cabeça. Numa noite de derrota, ele foi deixado como morto num campo de batalha, à beira de um riacho. Lá, uma mulher, a primeira de sua existência com exceção de algumas prostitutas de tavernas, finalmente debruçou-se sobre ele. Ela o recolheu, cuidou dele até curá-lo. Só não pode devolver-lhe a visão que lhe tinha sido tomada por um sabre inimigo. Ela então lhe ofereceu sua vida, sua mão para conduzi-lo. Desse dia em diante, guiado por sua esposa, Taptuk não sonhava outra coisa a não ser encontrar ele mesmo um caminho até a fonte silenciosa de onde se eleva a luz que torna todas as coisas simples.
Uma noite, nesse deserto seco onde ninguém se aventurava, com exceção de alguns pastores, ele alcançou a fonte. Lá, construiu sua casa. Outros buscadores juntaram-se a ele, de tempos em tempos, levados por não se sabe que vento da alma. Eles reconheceram nesse homem imponente e de poucas palavras o mestre que eles esperavam. Construíram suas cabanas perto da sua e em volta levantaram uma paliçada.
Quando Yunus Emré chegou a esse lugar, o monastério de Taptuk, o cego, não era mais do que isso: algumas choupanas baixas rodeadas por um muro de pedras secas na estepe infinita. Taptuk, assim que apalpou o rosto e os ombros deste andarilho faminto de saber, prometeu-lhe a verdade.
– Ela chegará aos poucos, disse-lhe. Por enquanto seu trabalho será varrer sete vezes por dia o pátio do monastério. Yunus obedeceu de coração. No instante mesmo em que se viu diante desse ancião de cabeça raspada, uma confiança inquebrantável apoderou-se dele. Sete vezes por dia ele varria o pátio com entusiasmo, saudando alegremente o mestre e seus discípulos, quando eles se reuniam na casa da esposa onde Taptuk, o cego, ensinava todas as manhãs. Mas ninguém respondia às suas saudações. “Está bem que os discípulos me ignorem, dizia-se, mas aquele que tão bem me acolheu em sua casa, por que não me dirige a palavra?”
Assim se passou um ano, depois dois e três anos, sem que ninguém falasse com ele. Então, seu coração tornou-se pesado. “Sem duvida este silencio significa alguma coisa, pensou, seguramente meu mestre quer ensinar algo para minha alma, pois é à alma que se dirige a palavra sem voz.
“Refletiu sobre sua solidão, enxotando sete vezes por dia o pó que o vento trazia sem cessar para o pátio do monastério. Enfim, numa manhã de primavera, ao sair de sua cabana, a vassoura nos ombros, uma luz lhe veio. “Descobri! Taptuk quer ensinar-me a paciência”, se disse ele. Seu coração encheu-se de júbilo e ele voltou a varrer o pátio com um ardor renovado.
Cinco anos se passaram. Dois outros se escoaram ainda, depois três, depois cinco novos anos, sem que sua sorte mudasse. Então Yunus desesperou-se. “Que fiz eu para merecer tão longa indiferença?”se disse ele. Talvez meu mestre tenha me esquecido. Ou talvez não seja eu para ele senão um idiota recolhido por piedade, bom apenas para varrer o pátio. Esforçou-se, no entanto, para refletir desapaixonadamente. Numa noite de tempestade, veio-lhe ao espírito que Taptuk quisesse lhe ensinar a humildade. Em meio à escuridão atormentada em que se encontrava, ele sorriu. “É isso. Ele quer me ensinar a humildade”. Na manhã seguinte, quando iniciou o trabalho, seus gestos estavam mais comedidos e, porque seu coração estava em paz, ele se pôs, enquanto varria o pátio, a cantarolar. Pouca coisa. Palavras que lhe subiam aos lábios e que ele deixava ir ao vento pela única satisfação de ouvir voz humana. Entretanto, sua confiança em Taptuk pouco a pouco o deixou. Este homem, decididamente, o enganara. Ele não tivera jamais a intenção de ensinar-lhe o que havia prometido. “Perco minha vida a esperar”, se disse ele.
Cinco anos ainda, varreu o pátio, sem que ninguém o escutasse. Uma noite, cansado dessa miserável existência e convencido de que ninguém se aperceberia de sua ausência, decidiu deixar aquele lugar onde, depois de quinze anos de humilde paciência, não havia encontrado senão amargura e melancolia.
Ele se foi pela noite, caminhando sempre em frente. Andou até o amanhecer, embriagado de liberdade sem esperança. Sentiu fome e sede mas não havia nenhuma fonte onde saciar-se, nenhum abrigo onde pudesse refazer as forças neste infinito deserto de ervas amarelecidas, pedras e vento.
“Vou morrer, se disse. Que importa? Mais vale morrer caminhando do que varrendo o pátio de um louco”. Andou, por três dias inteiros. Na noite do terceiro dia, no momento em que ia deitar-se sobre um rochedo para oferecer seu corpo extenuado aos abutres, percebeu ao longe um acampamento. Surpreendeu-se. Nenhum viajante viria a essas terras. Quem poderiam ser essas pessoas? Aproximou-se. Viu homens sentados na entrada de uma grande tenda. Festejavam rindo e falando alto. Quando o viram, fizeram sinal e, gritando alegremente , convidaram-no a compartilhar sua refeição. Frutas deliciosa, assados apetitosos, bebidas de todas as cores em frascos de vidro estendiam-se em profusão sobre
um tapete de lã. Yunus acercou-se deles, bebeu, comeu, e finalmente ousou perguntar a essas pessoas por qual milagre, neste deserto hostil, eles se achavam assim providos de alimentos tão raros, como ele jamais havia experimentado.
Uma voz conduziu-nos aqui, disseram-lhe. Com certeza é o melhor lugar do mundo. Todos os dias o vento nos traz de longe os cantos de um dervixe desconhecido. Basta escutá-los e cantá-los que logo aparecem diante de nós todas essas iguarias suculentas que você vê. seríamos loucos, se fôssemos viver noutro lugar.
Yunus extasiou-se, confessou que jamais conhecera magia igual e atreveu-se a perguntar a seus companheiros se eles poderiam ensinar-lhe tais cantos para que ele não morresse de fome pelo caminho.
– Com prazer, responderam os homens. E se puseram a cantar. Então Yunnus, com os olhos arregalados e a boca aberta, ouviu os cantos que ele mesmo inventara durante cinco anos, varrendo o pátio do monastério. Reconheceu as mesmas palavras que pronunciara com o único desejo de enganar a solidão. Músicas nascidas do seu coração, na esperança de espantar a melancolia. Eram a sua obra. No mesmo instante ele compreendeu para qual trabalho ele estava neste mundo, experimentou a pura verdade de sua alma e sofreu a pior vergonha pensando em Taptuk que o havia instruído, sem que ele percebesse, como a um filho infinitamente amado. Então abraçou e beijou os homens que o haviam acolhido e voltou ao monastério correndo e chorando. “Taptuk me perdoará por eu ter duvidado dele? se dizia ele, bebendo o vento. Algum dia ele me perdoará?”
Já era noite quando chegou à porta carcomida que fechava a paliçada. Bateu chamando e pedindo piedade. O rosto de esposa de Taptuk apareceu em cima do muro.
-Eis que está de volta, Yunus, disse ela docemente.”Pobre criança! Não sei se Taptuk o aceitará de novo entre nós. Sua partida o desesperou.'”Que desgraça, disse-me ele, meu filho mais querido deixou-me. Que vale a minha vida daqui para frente ? “Vou abrir. Você vai dormir na poeira do pátio. Amanhã, quando seu mestre fizer o passeio matinal, vai bater o pé no seu corpo. Se ele disser: “Quem é este homem?”, então, você deverá partir para sempre. Mas se disser: “É você, meu bom Yunus?”, então saberá que pode outra vez viver em sua presença. Entre, meu filho.
Yunus deitou-se na poeira do chão. Ao amanhecer viu aproximar-se Taptuk, o cego, com sua esposa. Fechou os olhos, sentiu um pé contra suas costas e ouviu:
– É você, meu bom Yunus?
Ele se levantou inebriado de luz e de felicidade, correu para sua vassoura e começou novamente a varrer o pátio.
Assim ele fez até sua morte, sem falhar um único dia, quando se tornou semelhante ao pó mil vezes levado pelo vento, seus cantos se elevaram, invadiram os lugares onde viviam os homens e os nutriam com uma bondade tão perseverante que ainda hoje, nove cidades na Anatólia reivindicam o privilégio de ter em seu território o verdadeiro túmulo de Yunus Emré, o homem que Taptuk, o cego, iluminou.