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Carta aos que ficam

Abandono definitivamente vosso grandioso barco.

É um defeito meu não gostar do remar ordeiro,
ao som dos tambores um tanto já frenéticos dos vossos deuses.
Minha natureza desconfiada crê ver sombras
na costa para onde aproas,
apesar de todos os dias o sol nascer e se por no mesmo lugar,
como há séculos.
Chego mesmo a pensar ser pequena essa viagem que fizemos,
a que chamais Existência.
Talvez porque sismo em imaginar-me numa outra imensa jornada,
cujo início já se perdia quando embarquei convosco.
Também alvoroça-me a alma assustadiça pensar
que das vossas maravilhosas torneiras douradas
já não sai nem água,
quanto mais leite e mel.
Pesa-me sobre a cabeça a coroa magnífica da Civilização,
apesar do material leve e descartável de que é feita.
Ataca-me a impressão de ter a âncora amarrada aos pés.
Insisto em não me sentir abrigado debaixo do vosso tacão.
Envergonho-me da fome que tenho após as refeições frugais,
saudáveis ao espírito,
dos refeitórios da frota.
Chego mesmo a imaginar,
devo estar febril,
um bom pedaço do fausto
a flutuar no feijão…

Por isso abandonar-vos-ei hoje.
Tomo a direção contrária e vou sem embarcação alguma,
como veem.
Sei que sofrerei horrivelmente o ataque de toda a sorte de feras
e o desprezo dos outros remadores,
de cujos remos obedientes terei que esquivar-me.
Mas queima-me a consciência.
Sufoca-me uma dor pelas praias da inocência que perdi.
Rumarei sem descanso até o centro de tudo,
onde repousarei em mim e enfim,
não mais dividido,

abrirei os olhos para um mundo novo.

Resende, maio de 1990

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